terça-feira, 29 de junho de 2010

Arnaldo Jabour, como sempre, muito inspirado...






O amor impossível é o verdadeiro amor


Outro dia escrevi um artigo sobre o amor. Depois, escrevi outro sobre sexo.

Os dois artigos mexeram com a cabeça de pessoas que encontro na rua e que me agarram, dizendo: "Mas... afinal, o que é o amor?" E esperam, de olho muito aberto, uma resposta "profunda". Sei apenas que há um amor mais comum, do dia-a-dia, que é nosso velho conhecido, um amor datado, um amor que muda com as décadas, o amor prático que rege o "eu te amo" ou "não te amo". Eu, branco, classe média, brasileiro, já vi esse amor mudar muito. Quando eu era jovem, nos anos 60/70, o amor era um desejo romântico, um sonho político, contra o sistema, amor da liberdade, a busca de um "desregramento dos sentidos". Depois, nos anos 80/90 foi ficando um amor de consumo, um amor de mercado, uma progressiva apropriação indébita do "outro". O ritmo do tempo acelerou o amor, o dinheiro contabilizou o amor, matando seu mistério impalpável. Hoje, temos controle, sabemos por que "amamos", temos medo de nos perder no amor e fracassar na produção. A cultura americana está criando um "desencantamento" insuportável na vida social. O amor é a recusa desse desencanto. O amor quer o encantamento que os bichos têm, naturalmente.


Por isso, permitam-me hoje ser um falso "profundo" (tratar só de política me mata...) e falar de outro amor, mais metafísico, mais seminal, que transcende as décadas, as modas. Esse amor é como uma demanda da natureza ou, melhor, do nosso exílio da natureza. É um amor quase como um órgão físico que foi perdido. Como escreveu o Ferreira Gullar outro dia, num genial poema publicado sobre a cor azul, que explica indiretamente o que tento falar: o amor é algo "feito um lampejo que surgiu no mundo/ essa cor/ essa mancha/ que a mim chegou/ de detrás de dezenas de milhares de manhãs/ e noites estreladas/ como um puído aceno humano/ mancha azul que carrego comigo como carrego meus cabelos ou uma lesão oculta onde ninguém sabe".

Pois, senhores, esse amor existe dentro de nós como uma fome quase que "celular". Não nasce nem morre das "condições históricas"; é um amor que está entranhado no DNA, no fundo da matéria. É uma pulsão inevitável, quase uma "lesão oculta" dos seres expulsos da natureza. Nós somos o único bicho "de fora", estrangeiro. Os bichos têm esse amor, mas nem sabem.

(Estou sendo "filosófico", mas... tudo bem... não perguntaram?) Esse amor bate em nós como os frêmitos primordiais das células do corpo e como as fusões nucleares das galáxias; esse amor cria em nós a sensação do Ser, que só é perceptível nos breves instantes em que entramos em compasso com o universo. Nosso amor é uma reprodução ampliada da cópula entre o espermatozóide e óvulo se interpenetrando. Por obra do amor, saímos do ventre e queremos voltar, queremos uma "reintegração de posse" de nossa origem celular, indo até a dança primitiva das moléculas. Somos grandes células que querem se re-unir, separados pelo sexo, que as dividiu. ("Sexo" vem de "secare" em latim: separar, cortar.) O amor cria momentos em que temos a sensação de que a "máquina do mundo" ou a máquina da vida se explica, em que tudo parece parar num arrepio, como uma lembrança remota. Como disse Artaud, o louco, sobre a arte (ou o amor) : "A arte não é a imitação da vida. A vida é que é a imitação de algo transcendental com que a arte nos põe em contato." E a arte não é a linguagem do amor? E não falo aqui dos grandes momentos de paixão, dos grandes orgasmos, dos grande beijos - eles podem ser enganosos. Falo de brevíssimos instantes de felicidade sem motivo, de um mistério que subitamente parece revelado. Há, nesse amor, uma clara geometria entre o sentimento e a paisagem, como na poesia de Francis Ponge, quando o cabelo da amada se liga aos pinheiros da floresta ou quando o seu brilho ruivo se une com o sol entre os ramos das árvores ou entre as tranças da mulher amada e tudo parece decifrado. Mas, não se decifra nunca, como a poesia. Como disse alguém: a poesia é um desejo de retorno a uma língua primitiva. O amor também. Melhor dizendo: o amor é essa tentativa de atingir o impossível, se bem que o "impossível" é indesejado hoje em dia; só queremos o controlado, o lógico. O amor anda transgênico, geneticamente modificado, fast love.

Escrevi outro dia que "o amor vive da incompletude e esse vazio justifica a poesia da entrega. Ser impossível é sua grande beleza. Claro que o amor é também feito de egoísmos, de narcisismos mas, ainda assim, ele busca uma grandeza - mesmo no crime de amor há um terrível sonho de plenitude. Amar exige coragem e hoje somos todos covardes".

Mas, o fundo e inexplicável amor acontece quando você "cessa", por brevíssimos instantes. A possessividade cessa e, por segundos, ela fica compassiva. Deixamos o amado ser o que é e o outro é contemplado em sua total solidão. Vemos um gesto frágil, um cabelo molhado, um rosto dormindo, e isso desperta em nós uma espécie de "compaixão" pelo nosso desamparo.

Esperamos do amor essa sensação de eternidade. Queremos nos enganar e achar que haverá juventude para sempre, queremos que haja sentido para a vida, que o mistério da "falha" humana se revele, queremos esquecer, melhor, queremos "não-saber" que vamos morrer, como só os animais não sabem. O amor é uma ilusão sem a qual não podemos viver. Como os relâmpagos, o amor nos liga entre a Terra e o céu. Mas, como souberam os grandes poetas como Cabral e Donne, a plenitude do amor não nos faz virar "anjos", não. O amor não é da ordem do céu, do espírito. O amor é uma demanda da terra, é o profundo desejo de vivermos sem linguagem, sem fala, como os animais em sua paz absoluta. Queremos atingir esse "absoluto", que está na calma felicidade dos animais.

Arnaldo Jabor

terça-feira, 22 de junho de 2010

Pedaços de Mim, por Martha Medeiros



PEDAÇOS DE MIM



Eu sou feito de

Sonhos interrompidos

detalhes despercebidos

amores mal resolvidos



Sou feito de

Choros sem ter razão

pessoas no coração

atos por impulsão



Sinto falta de

Lugares que não conheci

experiências que não vivi

momentos que já esqueci



Eu sou

Amor e carinho constante

distraída até o bastante

não paro por instante




Tive noites mal dormidas

perdi pessoas muito queridas

cumpri coisas não-prometidas



Muitas vezes eu

Desisti sem mesmo tentar

pensei em fugir,para não enfrentar

sorri para não chorar



Eu sinto pelas

Coisas que não mudei

amizades que não cultivei

aqueles que eu julguei

coisas que eu falei



Tenho saudade

De pessoas que fui conhecendo

lembranças que fui esquecendo

amigos que acabei perdendo

Mas continuo vivendo e aprendendo.



Martha Medeiros

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Metade, poema de Ferreira Gullar



Metade


Que a força do medo que eu tenho,

não me impeça de ver o que anseio.



Que a morte de tudo o que acredito

não me tape os ouvidos e a boca.



Porque metade de mim é o que eu grito,

mas a outra metade é silêncio...



Que a música que eu ouço ao longe,

seja linda, ainda que triste...



Que a mulher que eu amo

seja para sempre amada

mesmo que distante.



Porque metade de mim é partida,

mas a outra metade é saudade.



Que as palavras que eu falo

não sejam ouvidas como prece

e nem repetidas com fervor,

apenas respeitadas,

como a única coisa que resta

a um homem inundado de sentimentos.



Porque metade de mim é o que ouço,

mas a outra metade é o que calo.



Que essa minha vontade de ir embora

se transforme na calma e na paz

que eu mereço.



E que essa tensão

que me corrói por dentro

seja um dia recompensada.



Porque metade de mim é o que eu penso,

mas a outra metade é um vulcão.



Que o medo da solidão se afaste

e que o convívio comigo mesmo

se torne ao menos suportável.



Que o espelho reflita em meu rosto,

um doce sorriso,

que me lembro ter dado na infância.



Porque metade de mim

é a lembrança do que fui,

a outra metade eu não sei.



Que não seja preciso

mais do que uma simples alegria

para me fazer aquietar o espírito.



E que o teu silêncio

me fale cada vez mais.



Porque metade de mim

é abrigo, mas a outra metade é cansaço.



Que a arte nos aponte uma resposta,

mesmo que ela não saiba.



E que ninguém a tente complicar

porque é preciso simplicidade

para fazê-la florescer.



Porque metade de mim é platéia

e a outra metade é canção.



E que a minha loucura seja perdoada.



Porque metade de mim é amor,

e a outra metade...também


Ferreira Gullar