quinta-feira, 10 de junho de 2010

Metade, poema de Ferreira Gullar



Metade


Que a força do medo que eu tenho,

não me impeça de ver o que anseio.



Que a morte de tudo o que acredito

não me tape os ouvidos e a boca.



Porque metade de mim é o que eu grito,

mas a outra metade é silêncio...



Que a música que eu ouço ao longe,

seja linda, ainda que triste...



Que a mulher que eu amo

seja para sempre amada

mesmo que distante.



Porque metade de mim é partida,

mas a outra metade é saudade.



Que as palavras que eu falo

não sejam ouvidas como prece

e nem repetidas com fervor,

apenas respeitadas,

como a única coisa que resta

a um homem inundado de sentimentos.



Porque metade de mim é o que ouço,

mas a outra metade é o que calo.



Que essa minha vontade de ir embora

se transforme na calma e na paz

que eu mereço.



E que essa tensão

que me corrói por dentro

seja um dia recompensada.



Porque metade de mim é o que eu penso,

mas a outra metade é um vulcão.



Que o medo da solidão se afaste

e que o convívio comigo mesmo

se torne ao menos suportável.



Que o espelho reflita em meu rosto,

um doce sorriso,

que me lembro ter dado na infância.



Porque metade de mim

é a lembrança do que fui,

a outra metade eu não sei.



Que não seja preciso

mais do que uma simples alegria

para me fazer aquietar o espírito.



E que o teu silêncio

me fale cada vez mais.



Porque metade de mim

é abrigo, mas a outra metade é cansaço.



Que a arte nos aponte uma resposta,

mesmo que ela não saiba.



E que ninguém a tente complicar

porque é preciso simplicidade

para fazê-la florescer.



Porque metade de mim é platéia

e a outra metade é canção.



E que a minha loucura seja perdoada.



Porque metade de mim é amor,

e a outra metade...também


Ferreira Gullar


Nenhum comentário: